Comércio & Investimento

China e América Latina: um relacionamento transformado

A influência da China no mundo vem crescendo cada vez, o que significa que o Diálogo Chino é leitura essencial

A China alcançou avanços importantes em seu relacionamento com a América Latina e o Caribe em 2018. Trindade e Tobago foi o primeiro país da região a abraçar o programa global de comércio e infraestrutura da China, conhecido como a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), mas outras nações não tardaram em seguir pelo mesmo caminho. No final do ano, a Bolívia, Antígua e Barbuda, Guiana, Uruguai, Costa Rica, Venezuela, Chile e Equador já faziam parte do grupo de países que assinou acordos com a ICR, juntamente com El Salvador, que precisou primeiro transferir seu reconhecimento diplomático de Taiwan para a República Popular. Cada novo aderente da iniciativa, pequeno ou grande, recebeu uma acolhida calorosa no projeto de desenvolvimento que Pequim vem apresentando como a melhor aposta para o futuro da América Latina.

Estas novas relações chamam ainda mais atenção pelo fato de que, durante os primeiros cinquenta anos de sua existência, a República Popular da China (RPC) manifestou muito pouco interesse na América Latina, região que havia sido definida pelos Estados Unidos como área de interesse exclusivo na sua Doutrina Monroe, de 1823.  

A indiferença, no entanto, sempre foi mútua. Em 1960, o novo governo revolucionário de Cuba estabeleceu relações diplomáticas com a China, mas, com exceção do Chile (1970), a maioria dos governos latino-americanos não reconheceu a RPC até que o ex-presidente americano Nixon visitou Pequim em 1972, sinalizando uma mudança nas alianças globais. A Argentina e o México reconheceram a RPC naquele ano, o Brasil fez o mesmo em 1974, e a Bolívia em 1985.

2001,

o primeiro ano em que um presidente chinês visitou a América Latina

Naquela época, o nível de engajamento com o país asiático era baixo, e isso continuou apesar da nova política de reforma e abertura de Deng Xiaoping, lançada para valer somente no início dos anos 90. A política ajudou a China a aproveitar a onda de globalização que desencadeou a maior e mais rápida revolução industrial do mundo. A expansão das indústrias transformou a China em um país sedento pela energia e pelos recursos naturais da América Latina, mas foi apenas em 2001 que o presidente chinês Jiang Zemin veio visitar a região.

Desde aquele ano, as relações entre a América Latina e a China vêm se transformando. Em 2010, a China já havia tomado o lugar dos EUA como o maior parceiro comercial da América do Sul, bem como o de maior investidor na região. Hoje, uma série de anúncios atraentes sobre megaprojetos de infraestrutura conseguiu a façanha de alojar a América Latina na mente da China, especificamente na sua visão sobre o futuro global, mesmo que muitos desses projetos tenham atrasado ou pareçam improváveis.

Acumulam-se indícios em Washington de que os EUA tentarão forçar seus parceiros a escolherem um lado: EUA ou China.

O esforço chinês não se limitou ao setor de comércio e desenvolvimento: interessada em construir uma imagem positiva na região, a China investiu pesado nas versões em espanhol e português da sua mídia estatal e partidária, além de cultivar parceiros locais. A história que a China conta é sobre parcerias ‘ganha-ganha’ e mutuamente vantajosas.

A realidade, no entanto, é inevitavelmente mais complexa. Embora muitos governos não escondam seu entusiasmo com as promessas de investimento, nem todos se comprometeram com a ICR. A Argentina não se comprometeu formalmente, apesar da reunião bilateral que aconteceu entre o presidente Xi e o presidente Macri que aconteceu nos bastidores da cúpula do G20 em Buenos Aires. No Brasil, o recém-eleito presidente Bolsonaro tem um histórico de se posicionar contra a China. A crise na Venezuela, que continua, acabou por dar mais peso aos avisos que vêm sendo divulgados por uma série de oficiais dos EUA sobre os perigos da influência da China e o que eles chamam de “diplomacia da dívida”. Acumulam-se indícios em Washington de que os EUA tentarão forçar seus parceiros a escolherem um lado: EUA ou China.

Presidentes Xi Jinping e Donald Trump (imagen: Shealah Craighead)

Enquanto isso, a China mantém seus próprios esforços diplomáticos: a Segunda Reunião Ministerial do Fórum da China e da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) foi realizada em Santiago, Chile, no mês de janeiro. O CELAC, bloco regional formado na Venezuela em 2011, não inclui os EUA e o Canadá. Os ministros de 31 nações da América Latina e Caribe, e os chefes de quatro organizações regionais e instituições multilaterais, incluindo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, das Nações Unidas, ouviram o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, insistir nos benefícios que a ICR traria. Em contraste à hostilidade explícita do presidente Trump a respeito de tudo que acontece ao sul da fronteira do seu país com o México, além do protecionismo sob o lema “América Primeiro”, Wang Yi prometeu que “a China permanecerá comprometida com o caminho do desenvolvimento pacífico e com a estratégia ganha-ganha de abertura comercial. O país está pronto para compartilhar os dividendos oriundos do desenvolvimento com todos os países”.

Se a promessa vai se cumprir ou não, o fato é que a transformação das relações com a China tem implicações de grande alcance para a região sul-americana como um todo, incluindo para a sua população, seus recursos, seu papel na mitigação climática, seu futuro crescimento e a distribuição dos benefícios desse crescimento. Muitas perguntas ainda pairam sobre a natureza e o impacto desse engajamento com o país oriental: os investimentos da China estão contribuindo com o desenvolvimento sustentável, ou levarão a uma “reprimariarização” de economias vulneráveis, matando as indústrias locais e acelerando as atuais crises ambientais, sociais e climáticas? Os empréstimos da China estão estruturados de uma forma sustentável, ou as ambiciosas exportações para o setor de infraestrutura causarão outra crise de endividamento na região?

Como as dificuldades econômicas da China – a dívida interna e os impactos da hostilidade comercial americana – afetarão sua capacidade de buscar seus objetivos na América Latina? O apetite chinês por soja vai continuar impulsionando a destruição das florestas da América do Sul? Seu apetite por peixes vai esvaziar os mares da região? E como a sociedade civil latino-americana vai conseguir encontrar uma forma de engajar os atores chineses, uma vez que existem barreiras de idioma e costumes, além da distância física que separa as regiões?

O alcance da China está sendo testado e os benefícios de alguns dos relacionamentos estão sendo questionados agora que a região enfrenta mais inseguranças. A guerra comercial entre os EUA e a China teve um efeito em cascata no setor de agronegócios da América do Sul; no México, o recém-empossado presidente Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, é nacionalista e desafiou a cleptocracia do Partido Revolucionário Institucional (PRI); na Nicarágua, protestantes rurais se manifestaram contra o canal e apoiaram as revoltas nacionais antigoverno. Enquanto isso, na Argentina, os críticos questionaram o atual modelo de agroexportação, uma vez que o país também enfrenta uma crise econômica.

 

Presidente Andrés Manuel López Obrador (imagen: MarioDelgadoSi)

Na Colômbia, uma crise ambiental no último mês de maio, época em que o país se preparava para as eleições presidenciais de junho, atraiu a mídia: a barragem de Hidroituango – parcialmente financiada pela Chinaentrou em colapso, trazendo à tona questões ambientais pela primeira vez desde a última geração. No Peru, um dos países com o histórico mais longo de engajamento com a China na região, houve conflitos contínuos sobre a gestão chinesa do setor de mineração.

Isso tudo faz parte de uma série complexa e multifacetada de relacionamentos em uma região marcada por uma rica diversidade. É essencial que sejam contadas as histórias daqueles que estão envolvidos nessa grande transformação, que sejam questionadas as propagandas oficiais e as declarações feitas por atores poderosos, e que sejam ouvidas as vozes daqueles que estão sendo afetados. O Diálogo Chino se dedica à reportagem, análise e cobertura dessas questões vitais no seu website dinâmico e trilíngue (inglês, espanhol e português).

No próximo ano, vamos acompanhar o progresso do Acuerdo de Escazú, que busca proteger os ativistas ambientais e que agora precisa ser aprovado pelos congressos nacionais. Avaliaremos o impacto do novo relacionamento com a China nas eleições presidenciais de El Salvador, em fevereiro de 2019, e se haverá pressão para que a proibição da mineração de metais no país, que entrou em vigor em 2017, seja interrompida. Mais para o final do ano, os argentinos julgarão nas urnas o trabalho de um presidente que se viu de mão atadas, com opções restritas no âmbito das políticas, devido às duras condições impostas pelos empréstimos chineses concedidos na administração anterior. Vamos escrever sobre os impactos ecológicos sofridos por florestas e oceanos devido ao relacionamento com a China; analisaremos os impactos climáticos, sociais e econômicos – que são pouco divulgados – também causados por essas parcerias em rápida evolução.

Em um recente discurso realizado durante o 40º aniversário da introdução provisória de reformas que permitiram a integração política e econômica da China ao restante do mundo, o presidente Xi exaltou o sucesso do seu país em aumentar o poder brando na cultura e a influência internacional. A mídia internacional está às voltas com o desafio de entender e contar a história da ascensão da China de uma forma objetiva. Nosso jornalismo permanece independente, apartidário e livre de propaganda. Os públicos da América Latina e de todo o mundo exigem, e merecem ter, acesso a informações confiáveis e precisas sobre os impactos causados por um engajamento maior com a China. O Diálogo Chino está bem posicionado para atendê-los.

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