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Canal da Nicarágua vira ‘calcanhar de Aquiles’ do governo

Campanha contra canal provocou despertar de consciência sobre direitos humanos, criando dilema para país
<p>Lago da Nicarágua (imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/nataskola/2960112329/in/photolist-5vzmgt-4FopTs-9qQgcy-6XsWjV-iHSTuW-iHTZKb-9E3b4g-6915Lr-a5A5wJ-Rgi3p-RgiLn-68PXKC-6sRBZN-mjNuDC-rrQSh3-8yb1fK-bpX245-4zN3Q5-rua5MK-6sMshH-rczQBq-raQMaX-aJopMa-rrQPZY-bv6LQ6-b6XRyg-7PBWVh-qNNQNi-ru9Jhr-ru8zBH-qNY7q2-ru4xGL-qxaae9-rczMSN-rrShy7-fysLYt-9ZkeXS-b71TJa-dfUdMw-6959jG-aBo5wq-5V3ECx-6qF2sP-26TbnjZ-ru4DSG-raPdmH-dkpusC-91aHbt-rcz2Q1-rcH7mD">natacha cortez</a>)</p>

Lago da Nicarágua (imagem: natacha cortez)

Por um lado, não importa se o projeto de construção do grande Canal da Nicarágua – com extensão aproximada de 280 quilômetros e um potencial para causar impactos de proporções catastróficas no meio ambiente – irá adiante ou não. A dúbia constitucionalidade da lei que autorizava sua construção, bem como as repercussões adversas nos direitos humanos dos nicaraguenses, já deixaram suas marcas, independentemente da efetiva materialização do mega projeto avaliado em US$ 50 milhões, cujo cronograma se encontra atrasado.

Esta foi a mensagem de Mónica López Baltodano, da ONG Fundación Popol Na, da Nicarágua, para o Diálogo Chino, durante entrevista que concedeu no escritório da organização na capital Manágua.

“As pessoas dizem: ‘o canal nem existe, então você está lutando por quê?’”, afirmou López Baltodano. A resposta, segundo ela, é que a própria existência de uma lei específica para o canal – conhecida como Lei 840 – significa que o governo pode legalmente sufocar quem questiona o projeto, além de expropriar terras para construí-lo.

Como consequência direta da Lei 840, 119.000 moradores das margens do futuro canal enfrentam um cenário de incertezas, assédio e intimidação por parte de construtoras. O governo levou as forças “armadas até os dentes”, como afirmou López Baltodano, para realizar um censo das comunidades rurais afetadas pela construção do canal. Sempre foi negada a essas populações uma participação significativa nos processos de consulta sobre os impactos, adicionou.

Enquanto a imprensa vem focando nos atrasos do canal, López Baltodano afirma que a principal questão é negligenciada: a erosão dos direitos que vem ocorrendo desde que o projeto foi anunciado, em 2013.

Naquele ano, o governo nicaraguense acelerou a tramitação da Lei 840, concedendo a Wang Jing, empresário chinês de telecomunicações, os direitos exclusivos para a construção e operação do canal, por mais de 100 anos. A partir de então, López Baltodano passou a documentar todas as violações dos direitos dos cidadãos nicaraguenses.

Para marcar o quarto aniversário da concessão do canal, que aconteceu agora em junho deste ano, López Baltodano divulgou o livro “La Entrega de un País: Expediente Juridico de la Concesion Canalera en Nicaragua”, título ainda sem tradução em português. Segundo ela, o livro é um compêndio de documentos jurídicos, um registro das marchas (a 91ª aconteceu em 15 de agosto) e petições (uma petição da Avaaz conseguiu mais de 80.000 assinaturas), e contém artigos da imprensa relacionados ao canal. A publicação também conta com registros da intransigência do governo que, segundo a autora, caracterizou todas as interações dele com a campanha contra o canal.

“Não há possibilidade alguma de conseguirmos acesso à justiça [na Nicarágua]”, disse López Baltodano, recordando os obstáculos que enfrentou durante a campanha conjunta com o Conselho Nacional para a Defesa da Terra, Lago e Soberania, uma organização comunitária rural, que visava revogar a lei do canal. Ao terem seu pedido de audiência negado, os ativistas da campanha anunciaram, no dia 26 de julho, que levariam o caso até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) na cidade de San José, capital da Costa Rica, uma vez que eles têm poder para ordenar aos governos nacionais sob a sua jurisdição (caso da Nicarágua) que cumpram suas decisões judiciais.

Porém, há casos de decisões do CIDH contra a Nicarágua que foram desrespeitadas pelo país. Em 2001, o tribunal regional ordenou ao governo nicaraguense (então liderado pelo liberal Arnoldo Alemán) o reconhecimento legal dos direitos de propriedade do grupo indígena Awas Tigni ao seu território ancestral, ocupado ilegalmente por colonos vindos de outras regiões da Nicarágua. A decisão foi refletida na legislação federal do país (Lei 445), mas ainda assim não foi plenamente implementada, o que significa que a integridade dos territórios pertencentes a vários grupos indígenas da Nicarágua continua sendo violada.

Com esse precedente e sem o acesso ao devido processo legal, será que López Baltodano não estaria preocupada com mais uma recusa do governo em cumprir as decisões do CIDH? Neste caso, quais seriam as consequências?

“Sim, é uma possibilidade. Mas só porque não existe institucionalidade, não significa que os cidadãos não devem exigi-la”, respondeu López Baltodano. Ela explica que a razão de ser do seu livro e a estratégia para revogação da Lei 840 têm duas facetas: primeiro, o processo de registrar as agressões, campanhas, petições e ações legais, significa que o governo não poderá alegar mais para frente, que os ativistas não tentaram assegurar seus direitos através dos canais apropriados; segundo, é uma ferramenta de organização. A campanha conscientizou as comunidades sobre os seus direitos e deu grande impulso para os movimentos sociais.

“Era para ser o projeto estrela do governo, mas tornou-se seu calcanhar de Aquiles”, relatou López Balroando sobre o canal, “isso gerou uma força social com alcance gigantesco”.

As recentes demandas do movimento, que ainda são relativamente poucas, desafiam o presente arranjo político do país. Tipicamente, os movimentos sociais são cooptados por partidos políticos, que no fim fazem muito pouco para avançar sua agenda, disse López. É o que acontece com o partido que está no poder agora, a Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), e outros partidos menores que oferecem pouca oposição eficaz, acrescenta ela.

López disse ainda que as ações legais e os movimentos sociais foram “muito importantes” para frear o canal, mas ela teme as consequências de uma possível aliança entre interesses corporativos fortes e um governo ferido politicamente, o que pode resultar em medidas desfavoráveis.

A Nicarágua tem fé no seu aparato de segurança, que foi colocado à prova nos anos 80, quando o governo revolucionário sandinista reformulou seu papel após a derrubada do ditador Anastasio Somoza. O país não é, nem de longe, tão perigoso para os ativistas dos direitos ambientais e da terra quanto sua vizinha Honduras, onde eles foram mortos em número recorde. De qualquer modo, depois que a lei do canal foi aprovada de forma “extremamente rápida” e “obscura”, o direito ao protesto pacífico e à participação em consultas sobre os impactos do projeto encontra-se sob ameaça, conforme identificou um novo relatório da Anistia Internacional.

Uma carta ao jornal britânico the Guardian argumentou que o relatório não incluiu as pesquisas que mostravam que a oposição ao canal era apenas de uma minoria. Também argumentou que o histórico controle estrangeiro sobre a economia da Nicarágua, bem como os elevados níveis de pobreza do país, significa que a maioria dos seus cidadãos e sindicatos acredita que o canal conseguiria gerar os empregos e benefícios de que o país tanto necessita.

Na Nicarágua, o governo controla grande parte da mídia e isso pode influenciar a opinião pública. Segundo López, isso é um problema. Ela diz que é difícil transmitir as informações que contestam a linha do governo, principalmente nas comunidades que tem acesso restrito à internet ou ao sinal de celular – justamente as pessoas mais afetadas pelo canal.

Ela não concorda com a interferência de potências estrangeiras nos assuntos internos do país. López afirma que a retórica anti-imperialista na Nicarágua, que se tornou mais comum desde que os Estados Unidos apoiaram a contra-insurgência aos sandinistas nos anos 80, agora é usada para justificar a construção do canal. De acordo com alguns setores da esquerda, é preferível receber investimentos da Rússia ou da China, pois eles funcionariam como um contrapeso ao poder dos EUA.

Atualmente, a Nicarágua não tem relações diplomáticas com a China, ao contrário de outros países da América Central – incluindo a Costa Rica (2006) e o Panamá (junho de 2017) –, que estabeleceram relações diplomáticas formais, pavimentando o caminho para uma relação comercial e de investimentos mais abrangentes.

Embora o governo muitas vezes troque farpas com os EUA, que recentemente ameaçou impor sanções contra a Nicarágua por apoiar o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, o país norte-americano não é sempre visto como uma possível ameaça à sua soberania.

Desde o anúncio do canal, “o povo grita ‘fora chineses!’ assim como faziam com os gringos”, diz López. Mas, independentemente de qualquer percepção da existência de interesses econômicos predatórios, López concorda que algumas infraestruturas do canal, como o projeto do porto em águas profundas na cidade caribenha de Brito, podem beneficiar o país economicamente. A Nicarágua é o segundo país mais pobre do hemisfério ocidental.

Mas a questão principal é que todos os projetos devem ser avaliados pelos seus próprios méritos, defende López. Não devem ser aprovados indiscriminadamente e sem as consultas apropriadas. Para que isso aconteça, a lei do canal deve ser revogada, o governo deve abrir os processos de licitação pertinentes para cada projeto (Wang Jing foi o único concorrente para a concessão do canal), realizar estudos de impacto ambiental e aplicar a legislação vigente.

López admite que continuar fazendo oposição jurídica à lei do canal é uma tarefa gigantesca: “Agora que abrimos o processo, precisamos reunir muita documentação. Não temos capacidade para isso no momento”. Apesar de algum cansaço, porém, ela continua motivada: “Todos que participam de uma mobilização contra o canal, principalmente aqueles que visitam as comunidades rurais, percebem que são parte de algo realmente importante”. Ela acrescenta que os setores da sociedade que viviam separados, como a população negra e mestiça, ou a população rural e urbana, uniram-se na campanha:

“Fazemos parte de um despertar da consciência nacional. Isso terá um impacto sobre o país que ainda não conseguimos medir”.