Comércio & Investimento

Oposição venezuelana quer revisar acordos com China

Oposição exige ver as contas chinesas mas quer manter as relações cordiais

A acachapante derrota do oficialismo nas eleições parlamentares de 6 de dezembro é interpretada como um ponto de inflexão na marcha da autodenominada Revolução Bolivariana na Venezuela. Desde 1998, o “chavismo” se mantinha invicto nas eleições regulares; seu único revés nas urnas foi em 2007, em um referendo sobre a reforma constitucional proposta pelo então presidente Hugo Chávez, morto em 2013. O “chavismo” está em franca minoria na nova legislatura, que deve ser empossada no próximo dia 5 de janeiro de 2016: apenas 55, de um total de 167 cadeiras. Ainda parece cedo para analisar se a diminuição das chamadas forças revolucionárias é uma tendência definitiva entre o eleitorado, ou somente um acidente de percurso no caminho que leva à construção do socialismo do século XXI, a tão propalada “meta do comandante Chávez”. Entretanto, não há dúvida de que essa derrota significa uma nova dificuldade para o atribulado governo de Nicolás Maduro, desde abril de 2013 o sucessor de Chávez na presidência da Venezuela. O país enfrenta uma severa crise econômica, com queda anual do Produto Interno Bruto (PIB) calculada pela CEPAL em 7%, um déficit equivalente a 20% do PIB e a maior taxa de inflação do mundo – segundo o Fundo Monetário Internacional, cerca de 200% ao ano. Com dois terços da Assembleia Nacional, a partir de janeiro a oposição está habilitada não só a promulgar projetos de lei, mas também a interpelar e destituir ministros do gabinete ou até o vice-presidente da República. Sua maioria absoluta lhe permite patrocinar uma eventual reforma constitucional para diminuir o mandato presidencial ou convocar um referendo que pode destituir Maduro, a partir de abril próximo. Não é certeza, entretanto, que destituir o presidente esteja entre as prioridades da bancada oposicionista. Ninguém parece interessado em assumir as rédeas de um país caótico. Até agora, os representantes da Mesa de Unidade Democrática (MUD, a coalizão opositora) insistem em uma iminente lei de anistia para os 70 presos políticos detidos nas prisões venezuelanas e, sobretudo, em restituir a função controladora ao parlamento, desaparecida em 10 anos de maioria “chavista” na Assembleia Nacional. Duas vezes candidato a presidente pela oposição e governador do estado de Miranda, Henrique Capriles Radonski, vem propondo o que denomina de “Lei Candado”, para por fim à agressiva diplomacia petroleira do governo de Caracas, que permuta carregamentos de petróleo cru por favores políticos (ou bens de consumo e serviços). O exemplo do Petrocaribe, um conglomerado regional através do qual a Venezuela oferece petróleo com grandes descontos às nações insulares do Caribe, talvez seja o mais eloquente: o governo de Chávez garantiu, ao longo do tempo, os numerosos votos dos microestados antilhanos em foros internacionais. Calcula-se em RS$ 13 bilhões o montante anual que a Venezuela destina a estes pactos. Uma quantia semelhante Caracas sacrifica no subsídio dos preços internos dos combustíveis, principalmente a gasolina, cujo valor permanece igual desde 1999, ano em que Hugo Chávez começou a governar. Agora que os encargos financeiros colocam a própria “Revolução Bolivariana” em risco – e o país à beira de uma crise humanitária -, espera-se que ambas as situações sejam objeto de revisão. Dívida Chinesa Boa parte da dívida contraída pela Venezuela com a China é paga também com petróleo. Diante da falta de cifras oficiais, calcula-se que dos portos venezuelanos, todos os dias, partam para a China cerca de 300.000 barris de petróleo cru para amortizar essa dívida, de um total de 900.000 que Pequim compra diariamente da Venezuela. A proporção de carregamentos para pagar a dívida vai aumentando, enquanto a produção total vai declinando: essa é uma das causas, dentre tantas, da atual crise de liquidez da Venezuela. Recentemente, o vice-ministro de Finanças, Simón Zerpa, revelou que o financiamento concedido pela China à Venezuela chega a US$ 53 bilhões. A revelação veio a público no começo de dezembro, dias antes das eleições, durante um ato que ilustra com fidelidade o tipo de relação que o regime “chavista” construiu com Pequim: a televisão estatal transmitia, ao vivo, a chegada ao principal porto do país, Puerto Cabello, de 2.500 veículos para táxis da chinesa Chery. É uma fração dos 10.000 automóveis adquiridos pelo Estado venezuelano, a um preço de US$ 453 milhões, que o governo concedeu à sua clientela política. Quase de maneira simultânea, o presidente Maduro inaugurava uma montadora de ônibus Yutong na região centro-ocidental da Venezuela. Haier, outra empresa chinesa, é a marca oficial do programa Minha Casa Bem Equipada, no qual o Governo reparte eletrodomésticos a baixo custo ou sem custo algum a setores populares. Além de fornecer mercadorias para os programas de assistencialismo ou clientelismo, a China se converteu em um abastecedor para as contas venezuelanas. Sucessivos aportes de RS$ 5 bilhões que Pequim vem desembolsando desde 2014 – o mais recente, em setembro, para financiar a petroleira estatal PDVSA– mantêm a estreita liquidez do caixa público. Não se sabe se a quantidade mencionada pelo vice-ministro compreende só os recursos injetados no Fundo Chino-Venezuelano, criado por ambas as nações em 2008, ou se abrange todos os mecanismos de financiamento abertos por Pequim. A falta de transparência, em todo caso, é a característica desses convênios. Não é de se estranhar, portanto, que uma das primeiras declarações do economista José Guerra, após ser eleito pelas forças oposicionistas como deputado por Caracas, haja sido para anunciar a intenção de revisar os acordos com a China. “Vamos exigir as contas com a China”, disse em uma entrevista Guerra, ex-chefe de Investigações do Banco Central da Venezuela (BCV) e que, por sua experiência, faz as vezes de ministro oficioso de Economia em um Gabinete de Sombra. “A condição de aliado e a relação comercial passa por explicar os acordos, não por ocultar as cifras. De quanto é o financiamento? A qual taxa implícita ou explícita? E as condições financeiras? Os chineses são os maiores interessados em que isto seja esclarecido para que nós, que somos maioria, saibamos que a relação vai continuar em bons termos”. Assim, Guerra ratifica com clareza que “a China é um aliado comercial da Venezuela e queremos manter essas relações”. Parece pouco provável que a oposição queira prescindir de uma das poucas fontes de financiamento que restaram à Venezuela, em um momento crítico da sua economia. Por seu lado, a China continua interessada em recuperar seus empréstimos, seja em dinheiro, seja em petróleo, além de conservar um mercado já consolidado para suas exportações de produtos manufaturados. Qualquer que seja o caso, o panorama político promete complicar na Venezuela com a maioria opositora no parlamento. Os primeiros sinais do oficialismo, após sua derrota eleitoral, antecipam sua intenção de bloquear qualquer iniciativa da Assembleia Nacional, mediante a instrumentalização do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) – controlado pelo “chavismo” – ou usando subterfúgios legais. O previsível conflito de poderes pode conduzir a uma paralisação institucional, ao naufrágio definitivo da precária economia venezuelana e, ainda, criar um pesadelo para os credores chineses: o de não saber a quem apresentar-se para cobrar.

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